"Você tem que parar de fazer isso"

Quando conheci Tina, eu admito que não estava prestando muita atenção de início. Eu havia acabado de me mudar e estava cansado, enjoado e extremamente irritado.

Tina, gentil como sempre, havia percebido minha dificuldade em carregar a minha quantidade absurda de malas e se ofereceu para me ajudar.

— Licença — ela disse — Você gostaria de alguma ajuda? 

A voz dela era calmante. É calmante. Ainda é, nunca deixou de ser. Enfim, isso não é importante no momento.

— Sim, por favor.

Juntos, nós levamos todas as malas para dentro do cômodo que seria o meu quarto. Somente quando terminamos que eu realmente prestei atenção à ela.

Ela era bonita. É bonita. Dandara tem cabelos compridos e pretos, frequentemente trançados, e pele escura. Francamente falando, a descrição que for, ainda por cima hoje em dia, não faz jus à beleza dela.

Eu pressionei meus lábios em uma linha fina, abaixei a cabeça e suspirei.

— Você está bem? — ela perguntou, com um tom levemente preocupado.

— Sim — eu respondi, com a voz fraca, e levantei a cabeça — Sim.

— Que bom — ela disse — A gente se vê, então?

Eu assenti.

— A gente se vê.

E a gente se viu. Às vezes, a gente se via no condomínio. Era um “oi” aqui, outro ali.

Mas a gente começou a se falar mesmo quando eu a vi no trabalho. Na época, eu trabalhava como vendedor numa livraria, a Flor de Lótus. Até hoje, essa é a livraria e a flor favorita de Tina por causa disso.

— Você por aqui? — ela me chamou.

Vou ser bem franco: o susto que eu levei naquele momento provavelmente foi cômico.

A começar pelo fato de que, quando eu me assusto, eu não tenho nenhuma reação aparente além de arregalar os olhos e parecer absolutamente horrorizado.

E a terminar pelo fato de que aquela mulhe, apesar de ter cerca de 1,80m de altura não estava fazendo literalmente nada além de sorrir docemente para mim.

— Meu Deus do céu — eu disse, em um tom tão calmo que eu mesmo cheguei a me surpreender — Que susto.

Eu descansei minha testa na prateleira que eu estava arrumando e suspirei.

— O que você faz aqui? — perguntei.

— Estou comparando preços de livros — ela respondeu — Você saberia quanto custa esse?

Ela levantou o livro “Cool for the Summer: Um verão inesquecível”, de Dahlia Adler.

— É gay — eu disse — Não, bi. Mas é gay, né… enfim.

— Eu sei. Quanto custa?

Eu dei de ombros e lhe dei o preço, não lembro exatamente qual era. Até que uma coisa me veio à atenção.

— Eu não sei o seu nome — eu disse, meio desesperado.

— Não, não sabe — ela disse, divagando, como se fosse apenas um detalhe a mais — Sou Dantina Pellegrini. Tina E você?.

— Lyall Ariti.

— Certo — ela disse — Lyall Ariti.

E ela foi embora, com seu sorriso lindo e gigante.

No fim de semana seguinte, ela voltou. E no outro fim de semana seguinte, e no outro, e quase todos eles.

Às vezes, ela me perguntava qual era um livro recomendado. Outras, ela já vinha com algum livro em mente. Mas ela se tornou uma cliente recorrente da livraria Flor de Lótus.

— Ei, qual é um livro que você recomenda? — ela me perguntou, uma vez.

— Bem… “A Bússola de Ouro”, de Philip Pullman.

— É trilogia. Pode ser livro único?

— Livro único… “O Medo é Feito de Gelo”, de L.S. Englantine, rivals to lovers, bem fluff. Tem algumas sequências, mas pode ser lido como livro único.

Ela riu.

— Certo. Muito obrigada.

— De nada.

Após passar pelo caixa, ela voltou até o lugar onde eu estava, agora com uma expressão mais acanhada.

— Ei…

— Oi — eu disse.

— É… eu queria saber se… você… gostaria de… ir… à sorveteria… comigo?

Eu pisquei. Ela estava me chamando para um encontro? De repente, eu sentia vontade de vomitar. Eu não sabia como responder.

Eu admito que levei algum tempo para pensar. Talvez — provavelmente —, tempo demais.

— Você está bem? — ela perguntou.

— Sim. E… sim, eu gostaria de ir à sorveteria com você?

O rosto dela se iluminou e aquele sorriso lindíssimo dela apareceu.

— Sério? Pode ser depois do seu expediente?

— Pode.

É… eu tinha um encontro com Dantina Pellegrini.

Na sorveteria, descobri várias coisas sobre Tina.

Descobri que ela gosta de filmes de comédia romântica, mas ocasionalmente assiste algum filme de ação com a melhor amiga, geralmente da DC (a melhor amiga dela não gosta tanto de Marvel, o que achei um absurdo, mas não comentei).

Descobri que ela leria qualquer coisa, desde que fosse livro único. Ela lia, no máximo, duologias e sequências, mas não tinha paciência para ler qualquer coisa mais.

Também descobri que, apesar do sobrenome, ela não tinha nenhuma ascendência italiana. Fora apenas um nome de que ela gostara e que ela decidira usar desde que tinha dezoito anos.

— Pellegrini significa “peregrino”, “estrangeiro”. E eu gosto de histórias de peregrinos, estrangeiros e todo tipo de viagem e etc.

— Entendo. Não sei o que meu sobrenome significa.

Ela pegou o celular e digitou alguma coisa.

— Significa… “approachable”, “generoso” e “amigável”.

— “Approachable”?

— É como se fosse… “aproximável”? Eu sei mais ou menos o que significa em inglês, mas não sei como traduzir para o português.

— Então você fala inglês?

Ela sorriu. E que sorriso mais lindo.

— Falo. E espanhol. São duas línguas bem fáceis.

— Inglês é um inferno. Não faz sentido. Eu falo italiano. Era a primeira língua da minha mãe.

Ela riu. Era uma risada gostosa. Boa de ouvir.

Depois disso, descobri também que ela gosta de estalar os dedos no ritmo de músicas. Ela fez isso com algumas músicas, “This Love” do Maroon 5, “Hotel California” dos Eagles e “Sweet Child O’ Mine” do Guns N’ Roses.

Eu disse a ela que preferia Marvel a DC, o que ela achou "Razoável". Disse também que eu gostava de ler coletâneas, porque fazia menos esforço para imaginar os personagens (“Interessante”) e que, quando eu conseguia, gostava de assistir Star Trek com a minha irmã mais velha.

Descobri que ela trabalhava em um observatório, e que havia se formado em astrofísica no ano passado. Em resposta, eu disse que estava terminando biblioteconomia.

— Sabe, as pessoas dizem que cientistas são o epítome da racionalidade, mas eu nunca trabalhei em um laboratório que não tivesse pelo menos, pelo menos, um maluco — ela disse — Se você está terminando biblioteconomia, e esse curso dura quatro anos, então você tem… 22 anos?

Eu assenti, meio surpreso. As pessoas não costumam saber que esse curso existe.

— E você tem...

— 23 — ela disse, e olhou para o relógio — Já são nove horas. É melhor nós irmos.

Arregalei os olhos um pouco. O tempo passara voando.

— Nossa, sim! — eu respondi — Você passa de novo na livraria semana que vem?

— Sim, claro. E… amanhã à noite, eu vou me apresentar em um clube. Você gostaria de ir? Eu te mando o endereço e etc.

— Claro! Até amanhã, então?

Ela sorriu.

— Até amanhã.


Depois do clube, veio o observatório, o teatro, o cinema, dentre muitas outras coisas.

E eu aprendi mais coisas sobre ela.

Aprendi que ela não gostava de doces. E que ela dançava balé contemporâneo. E que ela não gostava de barulhos altos. E outras coisas que não me lembro no momento, então não posso listar, mas que são absolutamente adoráveis.

No fim das contas, Tina acabou se mudando para a minha casa e para a minha vida, permanentemente.

— Eu te amo muito, sabia? — eu lhe disse um dia.

— Eu também te amo — ela respndeu — Lyall.

Isso era uma coisa que eu gostava. Ela sempre dava um espaço entre o meu nome e a frase. Dava um tom de importância.

— Você tem que parar de fazer isso — eu disse.

Ela olhou para mim, descrente.

— Fazer o que, senhor Ariti?

— Falar coisas que fazem eu querer te beijar.

Ela deu um sorriso de canto e desviou o olhar. Eu tinha conseguido envergonhá-la.

— Me beije, então. Senhor Ariti.

Dito e feito. Não foi nada demais, apenas um selinho, mas falando sério...

— Eu te amo demais — eu disse.

— É, eu também te amo bastante — ela respondeu.

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